sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Parceiros em ação na alfabetização

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Agrupar as crianças é uma estratégia importante na alfabetização, já que a troca de conhecimentos leva à reflexão sobre a escrita e faz todas avançarem

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A turma de Ana Cleide Souza parece estar em guerra. Ela tem 25 alunos de 1º ano na EM CAIC Alfredo Coelho de Magalhães, em Canindé, a 126 quilômetros de Fortaleza. As crianças, reunidas em grupos, falam ao mesmo tempo, em alto e bom som. A algazarra é tão grande que a professora da sala em frente fecha a porta. Mas Ana garante: "Não tem briga. Apenas barulho e muito debate. E o tema da conversa de todos é a atividade proposta". Tudo que os pequenos discutem desse jeito acalorado é sobre ler e escrever, sobre a posição da letra "p" ou o som da letra "m" numa determinada palavra. Não é combate. É alfabetização em grupo.
O uso de atividades coletivas na sala de aula começou a ganhar corpo após a educadora argentina Ana Teberosky publicar no início dos anos 1980 o livro Construção de Escritas Através da Interação Grupal, no qual defende que as crianças não chegam ao 1º ano sem saber nada de leitura e escrita, mas com hipóteses sobre a construção dessa linguagem e que essas hipóteses mudam quando elas interagem em situações de escrita. "O desdobramento disso é que a simples troca de ideias entre elas ajuda a desenvolver a compreensão sobre o funcionamento da escrita", diz a pedagoga Cristiane Pelissari, formadora do programa Ler e Escrever, da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nora 10. Desde então, a ideia de organizar grupos nas aulas evoluiu bastante, tornando esse tipo de atividade cada vez mais eficiente para a alfabetização.
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Mudanças de paradigmas 
O trabalho em grupo pressupõe uma verdadeira mudança de paradigma, não apenas para os alunos mas também para os professores, que têm de rever valores. Na abordagem clássica, a interação entre estudantes costuma ser vista como um fator problemático, com impacto negativo sobre a aprendizagem, pois atrapalha a velha fórmula em que apenas o adulto é dono de um conhecimento, que ele deve transmiti-lo e cabe aos alunos recebê-lo. Na nova abordagem, tudo muda. "Não se aprende a ler e escrever com memorização, mas com reflexão sobre a lógica da linguagem, um processo de construção em que a troca é importante", diz Cristiane. 

É preciso construir os chamados agrupamentos produtivos. Os melhores sempre são heterogêneos, pois as diferentes opiniões sobre o sistema de escrita deixam o debate mais rico e as possibilidades de confronto e troca aumentam. Quando o grupo é homogêneo, não há ninguém que desestabilize, e a atividade se torna pouco produtiva. "Na hora de escrever determinada palavra, um aluno pré-silábico pode colocar uma grande quantidade de letras. Se ele está com um colega que também é pré-silábico, fica por isso mesmo. Mas se está com um silábico, esse pode dizer que está errado e falar 'aqui vai o A ou o E e não precisa mais dessas outras letras'. Essa provocação faz o primeiro rever o aspecto quantitativo, enquanto o segundo reforça o que sabe sobre o sistema de escrita ao ter de explicá-lo", diz Ana Cleide.
Por outro lado, a distância entre o conhecimento dos integrantes do grupo não pode ser muito grande. Muitas vezes, os professores juntam um aluno pré-silábico com um alfabético em busca de um resultado final mais correto. Nesse caso, o mais avançado vai simplesmente se impor e o que ainda não domina o sistema vai continuar onde está, pois as elaborações são muito diferentes. Na alfabetização, o ideal costuma ser agrupar alunos de hipóteses próximas. Alunos pré-silábicos se agrupam com silábicos, e silábicos também podem ir com silábico-alfabéticos, que por sua vez funcionam bem com alfabéticos. "Se o grupo for muito heterogêneo, pode ser que um aluno fique para trás ou algum mais adiantado leve os outros nas costas. Isso tem de ser evitad", reforça Carolina Monteiro, professora de 1º ano do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. 

É preciso planejar o tamanho mais adequado dos grupos de acordo com a atividade, sempre evitando juntar mais de cinco alunos. Quanto maior eles forem, maior a probabilidade de alguém não participar. Para Carolina, o ideal no trabalho de alfabetização são as duplas. NOVA ESCOLA acompanhou o trabalho dela em sala. Na atividade proposta, os alunos tinham feito uma pesquisa sobre sapos, em casa, com a ajuda dos pais. Na classe, cada um apresentou seus resultados, contando o que tinha aprendido. Depois, ela formou duplas. O objetivo era redigir um texto de algumas linhas sobre os bichos. Enquanto um bolava o texto oralmente, o outro deveria escrevê-lo, embora os dois pudessem discutir à vontade tanto o ditado como a forma de redigir. 

Gustavo, silábico-alfabético, ditou para Ana Beatriz, alfabética: "A fêmea é maior que o macho". Ela escreveu o "a", um espaço e o "f". Gustavo continuou: 
- "M". 

- Não, tem outra letra, senão não faz o som de "fe". 

Gustavo pensou um pouco. 

- Coloca um "e", então. 

- Isso, um "e"... 

Ana Beatriz completou com "m-i-a, espaço, é", ("A femia é..."). Gustavo acompanhou e continuou soletrando: 

- "m-a". 

- Ainda falta... 

Um colega da dupla ao lado soprou: 

- "i-o-r". Os dois se olharam, concordaram e seguiram em frente, completando o "do" ("A femia é maior do..."). 

- Aí vem "q" com "e". 

- Não, está faltando uma letra - reclamou Ana Beatriz. 

- Um "a"? 

- Não! 

- Então não sei... 

- Para mim começa com um "q" e depois tem um "u"... 

Gustavo escutou, olhou para o papel e disse: - Mas tem um "e". Então ele vem depois do "u". 

- Isso! - E Ana escreveu "q-u-e". 

Gustavo então soletrou: 

- "O, espaço, m-a-x-o". 

- Terminou. 

No trabalho da dupla houve a intervenção de um integrante de outra, mas a "conversa paralela" foi voltada para a atividade. E os dois discutiram a construção da frase, letra por letra, cada qual com seu conjunto de ideias, assimilando e opondo a opinião do outro de acordo com a própria para produzir um resultado. Vale observar que o objetivo, como dito antes, não é chegar à frase "correta" do ponto de vista ortográfico, mas promover a reflexão sobre como escrever. "O importante é colocar a interação a serviço da reflexão. Não só a serviço do resultado", diz Cristiane. 

"O momento mais difícil costuma ser em agosto, quando já há muitos alfabéticos, que passam a cantar as respostas para os outros, que por sua vez não gozam seu momento de aprendizagem", afirma Ana Cleide. E aqui entra uma tarefa muito importante : planejar também atividades diferenciadas para os não-alfabéticos e para os alfabéticos, que precisam avançar e aprender ortografia, por exemplo. As atividades em grupo podem dar a falsa impressão de que o professor terá mais tempo livre, mas, quando todos os paradigmas mudam, pode ser que o trabalho seja mais difícil, principalmente no começo, quando ainda é preciso se adaptar. Você talvez fale menos, mas vai precisar planejar exaustivamente cada atividade e cada agrupamento. A estrutura das aulas deixa de ser construída em cima de seu próprio conhecimento para ser baseada no que os alunos sabem. Isso requer uma avaliação constante e específica de cada um. Por isso, a chave é falar menos e observar mais, prestar atenção na conversa dos estudantes e tomar nota de comportamentos e percepções que serão importantes para reorganizar os grupos se necessário. 
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Troca de papel
Uma das maiores dificuldades do alfabetizador é a forma de intervir, quando sua participação é solicitada durante uma atividade. "Os alunos aprendem em interação, o que não quer dizer que a intervenção do professor não seja importante", explica Cristiane. O educador não deve sonegar informação, nem entregá-la de mão beijada. Mas, como os grupos são heterogêneos entre eles e dentro deles mesmos, encontrar o ponto certo em cada situação para garantir que todos participem e possam raciocinar com base na colaboração do professor é uma verdadeira arte. A intervenção do professor não visa ensinar um produto - por exemplo, necessariamente soletrando a resposta. O que se quer é levar o aluno a avançar nas ideias de forma que ele possa integrar as novas informações. E, como os professores costumam estar muito ligados ao resultado, mudar a abordagem em relação a isso é um desafio especial no trabalho. 

É importante entender quando a interação aluno/aluno pode ser mais produtiva que a interação professor/aluno. Enquanto a condução do professor representa uma autoridade, entre si os alunos dialogam de igual para igual. "Se eu digo que alguém está errado, ele bloqueia e não escreve mais. Porém, quando vem do colega, o confronto o faz repensar suas hipóteses", diz Ana Cleide. 

Vencidos os desafios, as vantagens do trabalho em grupo aparecem no fim do ano. A turma de Ana Cleide chegou a dezembro com 100% de alfabetizados. A turma de Carolina começou com oito pré-silábicos, dois silábicos, sete silábico-alfabéticos e sete alfabéticos e terminou 2008 com apenas um silábico, um silábico-alfabético e 22 alfabetizados. 

O trabalho em grupo ainda desenvolve a socialização e o espírito de cooperação. "Isso é uma lição que as crianças carregam para a vida toda, dentro e fora de sala", ensina Carolina.
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Retirado do site Nova Escola

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